Mediação narrativa no contexto judiciário atual
Resumo
Ao ler o brilhante artigo “Mediação Narrativa: uma abordagem diferenciada para a resolução de conflitos” de Winslade e Monk da edição 54 da Nova Perspectiva Sistêmica, me senti convidada a refletir tanto sobre o contexto atual da mediação no Brasil quanto sobre os cuidados que esse cenário inspira com relação a mediação de casais, com filhos, em processos de divórcio.
A sociedade brasileira passa por um período de mudanças no entendimento sobre conflitos e suas possibilidades de (dis)solução. Embora a mediação já fosse uma realidade em diversos contextos judicias e extrajudiciais, só em 2010 com a Resolução 125/2010 do Conselho Nacional de Justiça foi oficializada e incorporada ao judiciário como método pré-processual nos Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania (CEJUSC) e em 2016 foi inserida no Novo Código de Processo Civil como parte dos procedimentos processuais.
Até então, na sociedade brasileira moderna, a ideia de justiça esteve atrelada de forma indistinta ao sistema judiciário e à obtenção de uma sentença, ou seja, acesso à justiça era sinônimo de acesso ao judiciário, que deveria culminar com uma sentença justa, nos parâmetros da lei. A expectativa era de que a sentença fixada heteronomamente pelo juiz colocasse fim à disputa. Na prática, o que se observou foi que a sentença encerrava o processo, mas a disputa entre as partes continuava. A reflexão e busca de soluções para essa insatisfação, somada a outros problemas de ordem estruturais, foram obrigando a sociedade a buscar outras formas de se compreender e fazer justiça. As mudanças ocorridas nos últimos seis anos, indicam que tem havido uma ressignificação da justiça como algo além de uma sentença, mais e mais a justiça vem sendo vista como um valor e bem a ser construído e preservado nas relações, algo que as pessoas produzem quando criam entendimentos sobre suas diferenças, podendo negociá-las com respeito mútuo.
O propósito me encanta e me enche de esperança e desejo de contribuir. Mas não podemos imaginar que uma mudança paradigmática como essa possa acontecer imediatamente, a partir de proposituras legais e normativas. Toda mudança cultural requer tempo para que se torne um modo de pensar e fazer cotidiano, sem produzir estranhamentos. Certamente, começar foi necessário, agora cabe ao conjunto da sociedade, o que inclui cada um de nós, a responsabilidade de experimentar, refletir, transformar.
Ao mesmo tempo em que mudanças de significado ocorrem, há expectativas de que velhos problemas se resolvam com a implantação dos novos institutos, como mediação e conciliação. Isso se observa com maior nitidez em relação a expectativa que se tem sobre tais institutos, visto que espera-se que ofereçam soluções rápida, traduzíveis em acordos, sendo o número de acordos firmados um critério usado para a conferir a eficiência do método.
Foi imersa neste contexto, que ao ler o artigo que expõe os objetivos da mediação narrativa e apresenta os recursos do método narrativo, nos convidando a pensar sobre o quanto as transformações das narrativas produzem mudanças cruciais na vida relacional das pessoas para muito além do acordo, fiquei fazendo uma pergunta que sempre me acompanhou: a que mesmo estamos nos propondo quando atuamos como mediadores? Nossa intenção está em produzir acordos ou em prioritariamente produzir novos modelos relacionais no qual o entendimento passa a ser possível e desejado entre as pessoas?
Essa questão se torna mais desafiadora nos casos de famílias com crianças e adolescentes, onde as conversas de mediação são realizadas entre os pais, mas os mais afetados pela relação que se produzir ali serão os filhos. Será na vida dos filhos que recairá o impacto sobre a forma como cada um dos pais tece sua narrativa de vida familiar, divórcio, parentalidade, bem como suas descrições de si mesmo e do outro e as expectativas futuras a partir destas histórias.
No caso dos conflitos familiares já era de muito conhecido que a sentença proferida pelo juiz, ainda que competentemente fundamentada nas leis e na jurisprudência, não colocava fim ao conflito. Ao contrário, o que se observava era que a busca pela sentença favorável a um dos lados (e a sentença só pode ser favorável a um dos lados), na medida em que exige que as pessoas entrem no jogo jurídico de argumentações e provas, acirra o embate e a identificação do outro como incapaz e inimigo. Observa-se que a demanda pode ser encerrada com a sentença, mas o mesmo processo que resultou na sentença, inadvertidamente cria as condições e fomenta os conflitos futuros.
Entre os casais que se separam, narrativas que começam com “o amor acabou, é melhor cada um seguir seu caminho, sem rancores”, na medida em que são contadas e recontadas a partir da lógica do litígio, pouco a pouco vão se tornando histórias de culpa, vítima e algoz, tal qual num filme de ficção onde os seres se transformam, o outro paulatinamente se transmuta. Aquele com quem até recentemente era possível conviver passa a ser descrito (e, a partir daí, visto e tratado) como violento(a), louco(a), péssimo(a) pai/mãe, alguém cuja proximidade é um risco.
As pessoas que buscam mediação para resolver seus conflitos, quase sempre, não desejam estar imersas em tais conflitos, menos ainda se sentirem presas e paralisadas por ele. Então, o que faz com que pessoas que não desejam o conflito o mantenham de forma tão eficaz? Suares (2010) compara as pessoas que se encontram em conflitos com o motorista que atola o carro. O motorista entra no atoleiro inadvertidamente, ao perceber que se “enroscou” começa a tentar manobras já conhecidas, que só vão piorando a situação. São manobras legítimas que já produziram resultados em outras situações, com outro tipo de solo, mas que para aquela situação são danosas. Quanto mais o motorista insiste, mais afunda. Muitas vezes, com os casais, coisa parecida vai acontecendo. Formas de falar/não falar, brincar/não brincar, fazer /não fazer, que sempre deram “certo”, podem, conforme a situação do “terreno” no qual se está, produzir efeitos contrários ao desejado. Justamente porque lhes parece que o que estão fazendo é o “natural”, continuam a fazer e cada vez se atolam mais no conflito sem se darem conta do porquê.
Atoleiros também podem ser construídos pelas histórias que as pessoas vão repetindo para si mesmas e para os outros. Quando em um processo de separação, as pessoas, por motivações diversas e, inclusive pela demanda judicial, destacam os momentos em que não houve colaboração ou confiança, recortam o que houve de pior na relação e lançam toda luz para os momentos em que o outro mostrou o pior de si, a descrição que emerge (e se cristaliza) do outro vai se tornando o que pode haver de pior. Descrição essa que vai definindo não só os rumos do processo judicial, mas também as formas de relação possíveis de se ter (ou não ter) com esse outro no futuro. As narrativas que são contadas nos processos afetam, não só a decisão do juiz mas, acima de tudo, as partes envolvidas no conflito. As pessoas se tornam reféns das narrativas dolorosas que construíram.
Quando pensamos que há um casal conjugal em processo de divórcio, ou seja, de término de um ciclo, mas há também um casal parental construindo uma relação futura para criação dos filhos, portanto, de início de ciclo, a proposta da mediação narrativa parece ser uma forma de ajudar não só a dissolver os conflitos atuais, como criar condições para que no futuro as diferenças produzam propostas criativas e capazes de incluir o novo. A riqueza da mediação narrativa é justamente a de oferecer recursos para a criação de um espaço relacional onde a construção de pais participativos e colaborativos se torna possível. Me parece importante considerar que essa mudança de narrativa e, portanto, das interações futuras, não decorre de uma “boa vontade” inicial ou uma “bondade inerente àquela pessoa”, mas ao trabalho realizado pelo mediador narrativo que conduz a conversa de forma a identificar na narrativa de vida em comum episódios de cooperação, respeito, colaboração e apoio que já tenham vivenciado, tornando possível que estas descrições componham a história futura.
Dentre os recursos que o mediador utiliza estão a escuta dupla e a contra história. A escuta dupla é o processo pelo qual o mediador, além de escutar a história do conflito trazida pelos mediados, ouve a contra história. Quando os mediados trazem a história do conflito, oferecem muitos fatos que a corroboram e fortalecem. Contudo, tangenciando a história narrada, pode-se identificar o que não é colocado como figura, mas que aparece como fundo. Por exemplo, ao contarem a história de conflito e desesperança que os trouxeram para mediação, é possível perguntarmos se a vinda deles traduz uma esperança de que as coisas mudem. Neste caso, a esperança, negligenciada na história inicial, aparece no contraste que o mediador nomeia na contra história. A contra história oferece, assim, uma narrativa preferível que permite alternativas de confiança e colaboração. Para que a contra história passe a sustentar ações, não basta ser tecida, precisa ter sua trama fortalecida por experiências passadas de sucesso e cooperação.
Concordando com os autores que a mediação é um método conversacional que propicia aos mediados a oportunidade de retomarem o diálogo e juntos construírem ou recuperarem condições de colaborar na solução de questões atuais e futuras, nosso desafio com os casais parentais é ajudá-los a resgatar as experiências de colaboração e respeito que já tenham vivido para construir narrativas atualizadas onde haja possibilidades de ajustes e acordos constantes. Sem uma nova narrativa que sustente uma relação de confiança, os acordos não ganham consistência e firmeza para subsistirem aos desafios que a criação conjunta dos filhos exigirá do novo casal parental.Downloads
Referências
Suares, M. (2010). Mediación: conducción de disputas, comunicación y técnicas. Buenos Aires: Paidós.
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